sábado, 13 de junho de 2009

Introdução

Este trabalho deveria ser apresentado como um seminário, utilizando-se assim dos recursos prosódicos, cênicos e técnicos para a apresentação de “O Sermão da Sexagésima” do Pe. Vieira. Segue, portanto, sua adaptação textual.
Abordaremos o contexto histórico-literário em que se insere o sermão, aspectos relevantes da vida do autor, a estrutura do “Sermão da Sexagésima” e os diálogos intertextuais com textos bíblicos e a retórica aristotélica.
Para que seja realizado um estudo sobre o “Sermão da Sexagésima” é necessário que se volte o olhar ao seu autor e as condições de produção desse texto, bem como ao período histórico. É valido ressaltar o ambiente religioso em que estava imbuída toda a nação portuguesa, sua devoção extremada aos valores católicos e a própria posição de Vieira dentro da hierarquia católica. Por outro lado, havia um panorama político pleno de meandros e jogos de poder. Vieira era tido como uma figura controversa que, de um lado cativava e mantinha um diálogo elevado com seu público, mas que, por outro, enfurecia aqueles contrários às suas idéias. Vieira pleiteou pelos índios do Brasil e pelos judeus da Europa, causas estas controversas em seu momento histórico. Desta forma, colecionou inimigos, que viram na morte do Rei de Portugal a ocasião ideal para persegui-lo, pois o Rei o protegia, e, logo em seguida à morte do monarca, Vieira enfrentou seu mais duro embate, contra o Vaticano.
De sua extensa obra, abordaremos o “Sermão da Sexagésima”, suas influências e aspectos relevantes à produção da obra, ou seja, a influência aristotélica segundo os preceitos da Escolástica; a prosa doutrinal e seus mecanismos discursivos empáticos e o conteúdo religioso usado por Vieira.
É notório o domínio do Pe. Vieira sobre a arte discursiva e suas habilidades para convencer seu público e é no bojo dessa consciência que ele atribui à primeira parte do Sermão da Sexagésima o nome em latim: “Semen est verbum Dei”, e o que se segue é muito mais do que se supõe de um simples sermão católico, pois Vieira discorre sobre a natureza dos sermões e daqueles que os professam defendendo o empenho do pregador cristão na arte de persuadir e é desta forma que é construído este sermão sobre o que deve ser um sermão e aqui pode-se reconhecer o conceito de metalinguagem.

Historiografia de Padre Antônio Vieira

Antônio Vieira nasceu em 6 de fevereiro de 1608, em Lisboa. Em 1614, quando tinha seis anos, foi trazido para Salvador, tendo estudado em um colégio de origem jesuíta. Naquela época, os jesuítas sondavam jovens para a ordem. Vieira, em 5 de maio de 1623, aos quinze anos, deixou sua casa, tornando-se noviço no dia seguinte.
No alvorecer do dia 8 de maio de 1624, a capital baiana presenciou a chegada de uma armada holandesa da Companhia Ocidental, que, despreparada, capitulou ao fim do mesmo dia. A população, e Vieira, refugiaram-se no interior. Posteriormente, a Bahia foi reconquistada e em 05 de maio de 1925, juntamente com as festividades de vitória sobre os holandeses, Vieira realizou os votos de castidade e pobreza.
Em 1626, foi posto à prova de capacitação literária ao ser incumbido de redigir a “Carta Anua ao Geral”, na qual narrou fatos da ordem para Portugal, incluindo a tomada de Salvador pelos holandeses. Em 1627, aos 18 anos, foi designado para lecionar retórica na Universidade de Olinda. Pregou oficialmente, pela primeira vez, na Bahia, na Quaresma de 1633. Em dezembro de 1634, Vieira foi ordenado padre. Em 1638 já ensinava Teologia. Também presenciou a chegada da armada holandesa, de Mauricio de Nassau, em Pernambuco.
Em 1640, Portugal readquire independência, com a subida ao trono de D. João IV. Em 1641,Vieira vai a Portugal para prestar obediência ao Rei, adquirindo a confiança do monarca após conhecê-lo, sendo em seguida nomeado pregador régio. Em 1642, pregou pela primeira vez junto à Capela Real.
Nessa época, Portugal passava pela guerra da Restauração da Coroa contra a Espanha, mas também havia conflitos contra a Holanda, França e Inglaterra. Em 1643, Vieria foi designado pelo rei Dom João IV para negociar a reconquista das colônias. Suas propostas eram conciliar Portugal e Holanda, entregando a província de Pernambuco, aos holandeses, a título de indenização, bem como reunir em Portugal os cristãos-novos, isto é, os judeus que estavam espalhados pela Europa, e protegê-los da inquisição. Em troca, os judeus investiriam nos empreendimentos do Império Português, por meio da criação de companhias de comércio nos moldes do modelo holandês.
Ocorre que, em Pernambuco, eclodiu um movimento de resistência e expulsão das forças de ocupação holandesas, prejudicando as negociações. Associado a isso, a sua postura de defesa dos cristãos-novos colocava em indisposição as relações dos jesuítas com o Santo Ofício, o que resultou em seu regresso ao Brasil, em 1652.

Desembarcou em São Luís, no Maranhão em 16 de janeiro de 1653, onde encontrou forte resistência contra a libertação dos escravos indígenas, sendo os jesuítas quase expulsos pela população. Após um sermão, retorna a Lisboa em 1654, para interceder junto ao Rei pelos indígenas escravizados. Ao chegar a Lisboa, encontra enfermo o rei D. João IV.
Com o falecimento de D. João IV, a sua autoridade diminuiu e os jesuítas tiveram alguns de seus privilégios removidos. A Inquisição chega a prendê-lo. De 1665 a 1667 ficou preso em Coimbra. Em 1669, foi anistiado e, após meses sem pregar, vai a Roma interceder por seus direitos, onde ficou até 1676, sob a proteção da Rainha Cristina da Suécia. No ano anterior, Vieira obtém a sua absolvição da Inquisição.
No começo de 1681, retorna ao Brasil, onde volta a pregar. Suas obras começam a ser publicadas na Europa. Em 1694, já não escreve de próprio punho. Logo após, perde a voz e encerra seus discursos. Falece em 17 de junho de 1697, na Bahia, aos 89 anos.
O padre Vieira foi um grande e produtivo escritor do barroco em língua portuguesa. Escreveu aproximadamente 200 sermões, entre os quais pode-se destacar o "Sermão da Sexagésima", e cerca de 500 cartas e profecias que reuniu no livro "Chave dos Profetas", o qual nunca acabou.

O Barroco e o Barroco em Vieira

Em Portugal, o Barroco abrange todo o século XVII e alcança, inclusive, toda a primeira metade do século XVIII. Contudo, sua gênese remonta ao século XVI, enraizando-se diante da crise espiritual e cultural desencadeada pelo progresso e pela decomposição de valores renascentistas. Como será visto adiante, o avanço e o desenvolvimento da ciência se contrapunha ao imobilismo senão ao retrocesso da religião.
Com efeito, a Escolástica, suma construída entre os séculos IX a XV, exigia para si a qualidade de senhora das verdades científicas e era fortalecida tanto pelo seu ensino nas universidades européias como pela contra-reforma. A violar esses dogmas religiosos, a inovação científica era representada por expoentes como Galileu Galilei, Francis Bacon e René Descartes, todos a propiciarem, ao século XVII, um método de conhecimento inovador, fundado na investigação científica e na sistematização filosófica. Como exemplo, o método de Descartes, ao impor a razão como acesso à verdade, contrariava a idéia de que a verdade possuía autoria e autoridade limitadas à Igreja.
Especificamente em relação a Portugal, a passagem do século XVI para o século XVII, marcou-o pela submissão à Coroa espanhola, assim como pela necessidade de se tornar independente a partir das Guerras da Restauração. Nesse conflito, portanto, Portugal aproximava-se mais da fé dogmática e tradicional do que da razão, da ciência ou do progresso. Além disso, em razão dessas mesmas circunstâncias históricas, Portugal isolou-se, voltando-se ainda mais ao fanatismo religioso, bem como a um nacionalismo exacerbado.
De todo modo, este contexto histórico de conflito entre a cultura renascentista e as imposições contra-reformistas, entre fé e razão, entre dogma e livre exame e entre progresso e tradição, o Barroco, como arte, apresenta-se também com a marca do contraste. Os artistas barrocos, em meio a esse conflito, expressam a angústia daí decorrente. O resultado é um estilo que vaza para o exagerado e, na literatura, evidencia-se o uso excessivo de figuras de linguagem, como, por exemplo, comparações, metáforas, hipérbatos e hipérboles, aliás, bastante presentes em Vieira.
Ainda na literatura, e melhor esclarecendo, o barroco se fundava em duas noções, quais sejam, o engenho e o conceito. O engenho era a faculdade de encontrar a semelhança nas coisas dessemelhantes. Por sua vez, o conceito é o ato de correspondência que se acha entre os objetos. Daí porque o grande número de metáforas, figura que viabilizava o encontro da semelhança em coisas dessemelhantes, bem como de oxímoros, figura que superava as antinomias, fundindo-as (fusionismo).
No mais, essa aproximação entre as dessemelhanças vazava em atividades hiperbólicas, na hipertrofia da visão e em um estilo que se voltava para o exagero, o ampliar dos sentidos e para o surpreender. A conseqüência está nas tendências do cultismo e do conceptismo, que inspirarão o barroco, tendências essas que, na prática, aparecerão no mais das vezes fundidas. Vejamos:
· características do cultismo: exuberância das formas, abuso da fantasia, de metáforas e de hipérboles, de trocadilhos e de adjetivações, apelo sensorial, aproximação com a descrição.
· características do conceptismo: valorização do conteúdo, jogo de idéias, expressão de conceitos, argumentação fundada em antíteses ou paradoxos, apelo racional, aproximação com a dissertação.

Essas características estão presentes também em Portugal, devendo sempre ser consideradas com as peculiaridades do fanatismo religioso e da exaltação patriótica, que conjugadas levaram a idéias messiânicas como a do sebastianismo, que, em Antônio Vieira, pode ser ilustrado pelo profetismo mítico.
O misticismo sebastianista serviu como mobilização para povo português em torno da reconquista da independência durante os anos de reinado da coroa espanhola, e é encontrado com tal misticismo na obra de Pe. A. Vieira. O mito do sebastianismo fala sobre a volta messiânica do Rei Dom Sebastião. Este, que desaparecera na batalha de Alcacer Quibir, teria sido um dos grandes reis de Portugal, que em seu tempo de reinado trouxe a glória ao país. Vieira pregava a fé de que renasceria um Portugal, semelhante ao tempo de Dom Sebastião. No texto do livro Palimpsestos: uma história intertextual da literatura portuguesa[1] , o autor faz um parâmetro da obra de Vieira, diz que o padre com as "façanhas de quem cria nos milagres da conversão" teria transportado o mito do sebastianismo a uma concepção católica, ou seja, assemelhando Dom Sebastião a Cristo, e dessa forma incitando a religião como forma de salvação. E mostra, por meio de sua pregação, que também com Deus, acreditando Nele e seguindo os seus ensinamentos, seria possível um novo Portugal.
A situação de decadência que o reino de Portugal vivia era concomitante com a perda de fiéis católicos, e a religião vivia a crise juntamente com a coroa. À medida que a nação se afundava em dívidas e ruía economicamente, o povo deixava de crer que a religião os salvaria. Porém, Vieira, com seu discurso a favor do renascer da fé, dizia o passado como um presente do futuro, como se o passado e o futuro fossem uma chave para o presente. Ou seja, o passado de Portugal seria algo que, no presente, estaria fadado a servir como exemplo de esperança para a civilização decadente.
O poeta samiR savoN, em seu soneto A breve idade da vida[2] , dialoga com a obra de Vieira sobre o acreditar em um futuro exemplar para Portugal. Note-se que narrar a História seria também uma chave possuída por Vieira, por ter o passado como um presente do futuro, o que consumaria, no caso, a glória de Portugal. Como dito por savoN, mesmo que Vieira lutasse contra a mordaça do Santo Ofício, tão forte era sua vontade de levar a palavra aos próximos que, caso sua missão não fosse cumprida, - "ver o dito feito" - valeria mais ter a vista do Céu com as retinas apagadas.

Ainda no que diz respeito ao Padre Antônio Vieira, a hipertrofia dos sentidos e a exploração da sensibilidade da visão não deixam de ser por ele praticadas. Assim, no Sermão da Sexagésima, chama seus ouvintes de “ouvidos de ver”, afirmando que a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos[3] e, para seu método de pregar, utilizará a figura de uma árvore, conforme será melhor explicado adiante.
Enfim, Vieira foi um autor predominantemente conceptista e um crítico do cultismo, não obstante tenha se utilizado de ingredientes cultistas a serviço do próprio conceptismo. A crítica ao cultismo tem seu ápice no Sermão da Sexagésima, no qual, tratando da arte de pregar, afirmará que a culpa pela não frutificação da palavra de Deus está também nos pregadores presos à forma e ao estilo rebuscado e de difícil compreensão; aos que não pregam com o uso da razão e dos exemplos; e aos que privilegiam a vaidade ao arrazoamento no uso da palavra. Destaque-se, para melhor compreensão, que o século XVII assistia a um progressivo desvirtuamento da finalidade da oratória sacra, cujos exercitantes se empenhavam em impressionar a platéia com malabarismos de linguagem, alusões políticas e efeitos teatrais. A estes pregadores as críticas de Vieira se dirigiram diretamente. Mas Vieira não se limitou a criticar outros modelos. No mesmo sermão, ele desenvolverá um método, verdadeira teoria retórica, que dominará a partir da segunda metade do século XVII até meados do séc. XVIII e que ficará conhecido como “método português de pregar”.
[1] SILVEIRA, Francisco Maciel. Palimpsestos: uma história intertextual da Literatura Portuguesa. 2ª ed. , São Paulo, Paulistana, 2008.
[2] Idem; ibidem; p.17
³ VIEIRA, Antônio. Sermões do Padre Vieira. Porto Alegre: L & PM, 2009, p. 31.

Prosa doutrinal religiosa

O Barroco é fruto de um Renascimento de certa forma ainda medievo em um Portugal que instalou a cruzada santa, se encaminhava a favor do Santo Ofício e do Púlpito, ou seja, que tinha como missão expandir a fé cristã católica e repreender todo tipo de heresia.
Com isso, esperava-se que os pregadores fossem capazes de ensinar e converter as pessoas; que fossem capazes de, até, mover e comover pedras.
Mas o que estava acontecendo não era isso. A verdadeira finalidade a que se destinava a pregação, isto é, admoestar, ensinar e converter as pessoas vinha se desvirtuando do púlpito para uma manifestação exterior e mais festiva de culto.
A Igreja era vista como um lugar de divertimento, aonde as pessoas iam apenas para ouvir o seu pregador preferido, não dando importância para a mensagem em si, mas sim para o pregador.
Os sermões eram cheios de alusões políticas e de efeitos teatrais. Há uma citação do Padre Antônio Vieira que diz: “As comédias portuguesas passaram do teatro ao púlpito”[1]. E era no púlpito, também, aonde muitas vezes os problemas políticos eram discutidos.
Os sermões eram encomendados, ou seja, eram mensagens prontas, onde os nobres e plebeus ouviam mais para deleite do que para crescimento e proveito espiritual.
Padre Antônio Vieira era contra toda essa situação, e por isso propôs um método concionatório, uma verdadeira teoria retórica, que dominou a partir da segunda metade do séc. XVII até meados do séc. XVIII. Este método tornou-se conhecido como método de pregar português, e ele está exposto no Sermão da Sexagésima.

[1] Idem; ibidem

Análise do Sermão da Sexagésima

O sermão da Sexagésima foi pregado na Capela Real localizada em Lisboa, em março de 1655. Este versa sobre a arte de pregar, apresentando uma teoria inspirada no movimento conceptista, apesar de conter em seu próprio corpo elementos cultistas.
Exerce o papel de prólogo em relação às outras em uma série de quinze volumes de peças oratórias produzidas pelo autor, que ainda afirma no texto do próprio sermão que este: “Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.”[1]
O tema é retirado de S. Lucas, VIII, 2 e todo o sermão é construído e costurado em torno deste versículo bíblico que diz Semen est verbun Dei, ou seja, a semente é a palavra de Deus. É a partir desta pequena passagem que o pregador desenvolve a metáfora que será matéria da pregação gerando o circuito alegórico da peça oratória que o autor apresenta por meio da pergunta retórica: “Pois se a palavra de Deus é tão poderosa, se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus?”[2]
O sermão, por versar sobre a arte do pregar, trazendo a teoria sobre o pregar que o autor defendia e utilizava, apresenta as características de oratória vieiriana, podendo-se extrair dele as características de sua parenética.
Como orientações de sua Parênese tem-se que a palavra de Deus gera o sermão, isto é, instaura a prédica fazendo com que todo o sermão tenha como fonte e tema a palavra divina; a palavra de Deus é também responsável pela persuasão, é eficaz e incontestável argumento ao sermão que se desenvolve permeado por citações bíblicas diretas e indiretas que lhe conferem autoridade e funcionam como base de prova e argumentação, por meio de correspondência alegórica e analógica. A palavra sagrada sugere ainda o desencadeamento metafórico da argumentação que reside fundamentalmente na Sagrada Escritura.
A prédica encarna o Ser divino, figura-o, quer se tornar a imagem de Deus através da metáfora do semeador e da estrutura motivada do sermão. Vieira equipara o semear ao pregar fazendo com que o pregador se torne a personificação do Verbo Divino, ou seja, torna-se o “Ventríloquo de Deus”[3] conforme o intitula samiR savoN.
O Sermão apresenta uma estrutura motivada que remete ao seu tema, Vieira prega como se realizasse uma “semeadura de palavras”: semeia cinco circunstâncias (teses) e por meio da negação as recolhe (antíteses) para obter o fruto (tese), sua estrutura constrói círculos concêntricos obtidos através de recursos como a anáfora, disseminação e recolha, intentando igualar-se a própria imagem de Deus, dizendo-se imagem e semelhança do criador:

“Deus fez-me à sua imagem e semelhança
dotou-me se sua ciência e segredos.”[4]

Ainda a respeito de suas orientações, tem-se que o Sermão fundamenta a escatologia mítico-profética de suas congeminações históricas, sendo que seu tom profético se faz presente nas digressões acerca do período temporal, apresentando o presente como futuro do passado e passado do futuro, visão esta que é “sua chave de profeta[5]” conforme aponta o poeta samiR savoN.
[1] VIEIRA, Antônio, Sermão da Sexagésima, in: SILVEIRA, F. M. . Literatura barroca. , São Paulo: Global, 1987. p.61
[2] Idem; ibidem; p.
[3] SILVEIRA, Francisco Maciel. Palimpsestos: uma história intertextual da Literatura Portuguesa. 2ª ed. , São Paulo, Paulistana, 2008. p. 16
[4] SILVEIRA, Francisco Maciel. Palimpsestos: uma história intertextual da Literatura Portuguesa. 2ª ed. , São Paulo, Paulistana, 2008. p. 17
[5] Idem; ibidem; pg. 16

Estrutura do Sermão

O sermão é dividido por Antônio Vieira de forma temática compondo ao todo dez partes. A primeira parte traz a apresentação do tema que gera o questionamento principal, o autor ainda incita os ouvintes por meio de diversas perguntas retóricas que são respondidas ao longo da pregação. Já a parte subseqüente expõe o plano que o pregador pretende executar na discussão do tema, é o intróito do sermão.
Na terceira parte tem-se o principio do desenvolvimento da longa argumentação que busca responder a questão: Porque a semente, isto é, a palavra de Deus, tão pouco frutifica?
Em resposta, Vieira apresenta o esquema triádico da comunicação, afirmando por meio de argumentação lógica que deve haver uma falha em algum dos elementos da comunicação. Elimina desta possível falha as hipóteses de ser culpado o receptor, ou seja, o ouvinte e de ser a culpada a mensagem por ser essa a palavra de Deus. Sugere que poderia ser causa da não semeadura da palavra divina o emissor, isto é, o pregador, trazendo então sua teoria sobre a arte de pregar.
Na quarta parte apresenta cinco circunstâncias que poderiam vir a ser motivo desta possível falha do pregador no processo de comunicação do qual resultaria a não frutificação da palavra de Deus. São tais circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo e a voz.
Na análise da primeira circunstância que é a pessoa do pregador, este deve ser um exemplo de vida, a concretização de suas palavras, pois “palavras sem obras são tiros sem bala” [1]. Diz que as “Palavras ouvem-se, as obras vêem-se”[2], o quê remete a valorização e hipertrofia dos sentidos, em principal da visão, a uma característica geral do movimento barroco. Entretanto, a esta exposição apresenta um contra exemplo, Jonas, figura bíblica iracunda, impaciente e desejosa de ver subvertida a Nínive, que apesar de fugitivo de Deus foi um grande pregador.
Na quinta parte analisa o estilo do pregador, demonstrando sua forte influência conceptista ao dizer que “o estilo há de ser muito fácil e muito natural” [3], iguala a arte de pregar a de semear que é a “arte que tem mais de natureza que de arte”[4]. Apresenta ainda sua contrariedade ao cultismo ao criticar os pregadores que fazem do sermão um xadrez de palavras dizendo que o estilo culto é negro, boçal e muito cerrado.
Iguala, por meio de metáfora, o estilo da pregação as estrelas que são muito claras e distintas e nem por isso são menos, pelo contrário, ocupam posição elevada e são criadas por Deus. Traz ao final, como antítese, os exemplos de grandes pregadores cultos (Nazianzeno, Ambrósio, Crisólogo, Leão, Clemente Alexandrino, Tertuliano) e de estilo escuro e duro (Basílio de Selêucia, Zeno Veronense) derrubando a tese de que seria esta a circunstância falha na comunicação.
Vieira defendia o conceptismo, mas como homem barroco, dividido, utilizava-se de ingredientes cultistas a serviço de uma agudeza conceptual.
Chega à parte seis apresentando a matéria do sermão, sendo que este deve ter “um só assunto e uma só matéria”[5]. A partir do versículo tema ocorre o desenvolvimento do circuito metafórico que afirma que o sermão deve ser como uma árvore, ter raízes fortes e sólidas no Evangelho; ter um só tronco por tratar de um só assunto e matéria; ter diversos ramos que são os diversos discursos nascidos da mesma matéria e nela continuados; ter folhas a cobrir os ramos, pois os discursos devem ser ornados e vestidos pelas palavras, demonstrando outra característica típica do movimento barroco que é o ornamento do discurso; ter varas que são a repressão dos vícios; ter flores que são as sentenças; e por fim, ter frutos que são a finalidade para o qual há de se ordenar o sermão.
Entretanto, conclui afirmando: “Mas nem por isso entendo que seja esta a verdadeira causa do que busco”[6].
A sétima parte da pregação discorre sobre a ciência do pregador, este deve pregar o que é seu, deve colher e semear o seu próprio trabalho, comer o pão de seu próprio suor. Dá o exemplo de uma passagem bíblica na qual descem do céu línguas do Espírito Santo que se colocam sobre a cabeça dos apóstolos e não em suas bocas. Ora, isto ocorre porque os pregadores devem pregar não só o que sai da boca, mas o que sai da cabeça. Novamente, nega a hipótese proposta através de um exemplo, apresenta Batista que pregou aquilo que tinha pregado Isaias.
Na oitava parte trata da voz do pregador. Revela que antigamente se pregava por meio de brados e hoje se prega conversando, mas que o conversar não é melhor que o bradar, pois em algumas situações “puderam mais os brados que a razão”[7]. Conclui não ser a voz motivo do sermão não frutificar, traz como exemplo Moisés que tinha a voz fraca, língua e boca embaraçadas e mesmo assim foi um grande pregador.
Na penúltima parte esclarece que se vê tão pouco fruto porque as palavras dos pregadores não são as palavras de Deus, são palavras divinas, porém utilizadas em sentido diferente daquele utilizado pelo Criador. Palavras que deturpadas em sentido distinto do correto se tornam palavras do demônio.
Por fim, diz que “há de pregar com fama e com infâmia”[8], isto é, deve-se pregar o que se convém, mesmo não sendo o mais agradável aos ouvintes e trazendo descrédito à fama do pregador. O médico não atende o gosto do enfermo ao curá-lo assim como o gosto dos ouvintes não deve ser atendido para que sejam salvos, pois “as pedras são aquelas que ouvem a pregação com gosto”[9]. O frutificar não se liga ao gostar de modo que se deve pretender com o sermão não que os ouvintes saiam contentes com o pregador, mas sim que saiam descontentes de si. Deve-se contentar a Deus, e não aos homens.


[1] VIEIRA, Antônio, Sermão da Sexagésima, in: SILVEIRA, F. M. . Literatura barroca. , São Paulo: Global, 1987. p.65
[2] Idem; ibidem; p. 66
[3] Idem; ibidem; p. 68
[4] Idem; ibidem; loc. cit.
[5] Idem; ibidem; p. 71
[6] Idem; ibidem; p. 72
[7] Idem; ibidem; p. 75
[8] Idem; ibidem; p. 81
[9] Idem; ibidem; loc. cit.

Intertextualidade

1. Com a Bíblia Sagrada
2. A Retórica aristotélica em Padre Antônio Vieira

1. Com a Bíblia Sagrada

Vieira, no sermão em questão, utiliza-se das escrituras sagradas não apenas para a elaboração do tema e desenvolvimento da metáfora principal, mas também ao longo do sermão, como forma de argumentação e embasamento, as apresentando tanto por meio de citação literal como através de citações indiretas, apresentado em sua pregação paráfrases, estilizações e figuras de linguagem oriundas da palavra divina.

Extraindo do texto do sermão passagens que remetem a sua fonte original pode-se criar um paralelo, apresentando então, a intertextualidade, que se apresenta no diálogo tão recorrente entre o “Sermão da Sexagésima” e a “Bíblia Sagrada”. Segue abaixo tal paralelo: (Clique nas imagens para aumentar)





2. A Retórica aristotélica em Padre Antônio Vieira

Movido pela razão, de que nada se move por si, e por meio de uma análise elaborada, Aristóteles, em sua Retórica resulta em um estudo da linguagem, que seria uma "codificação de preceitos nascidos da experiência com o objetivo de ajudar os outros a exercitarem-se corretamente nas técnicas de persuasão" [1]. Também chamada de Retórica Antiga, a Retórica é uma disciplina, que tem por objetivo persuadir um auditório a aceitar uma das opiniões a respeito da questão que se discute, pode-se dizer, portanto, que a Retórica é uma teoria do discurso persuasivo.

A filosofia aristotélica teve entrada no Ocidente por influência árabe, e passou a ser objeto de estudo em Universidades e mosteiros. Dessa forma, foi possível que intelectuais da Idade Média, apesar de negarem as invenções tecnológicas, estudassem a fundo teologia e filosofia. Os estudos acerca do discurso oral, deixados por Aristóteles, do campo jurídico ao religioso, teriam sido de conhecimento de Sto. Tomás, em meados do século XIV, e fizeram parte dos fundamentos de sua "Escolástica", de base aristotélica, que conseguiu conciliar a fé e a razão, de modo que a filosofia serviria à fé.

A "Escolástica" tomista veio a influenciar a Cia. de Jesus nos séculos XVI e XVII, e como tal, reminiscentes estudos sobre a obra aristotélica. Isso nos faz pensar que a Retórica aristotélica tenha sido influência para a forma da escrita e da composição de grande parte de discursos datados entre os séculos de transição da era. Antônio Vieira, como membro da Cia. de Jesus, provavelmente teve como parte de seus estudos os princípios de base aristotélica.

Dentro do objetivo da Retórica, que é persuadir o público, Antônio Vieira constrói seus Sermões. Segundo Dante Tringali [2], persuadir envolve vários aspectos e superpõe-se três níveis de persuasão: convencer, comover e agradar, que são os tria officia, as três funções retóricas.

"Etimológicamente, persuadir vem de per+suadere; per é um prefixo que significa "por completo" e suadere deriva da raiz suadv ; da mesma família de "suavis = suave". Persuadere = aconselhar, levar alguém aceitar um ponto de vista de modo suave, sem obstáculos. " [3]
Convencer: cum + vincere, isto é, vencer o opositor com a participação dele. Convencer tecnicamente quer dizer persuadir a mente através de argumentos lógicos. O convencer implica o docere = doutrinar , doutrina-se para persuadir.

Comover: em latim cum + movere , comover , vem a ser persuadir o coração através dos afetos : sentimentos , emoções, paixões. Perturba-se a mente do ouvinte através da afetividade, graças à qual, a vontade arrasta a mente.

Agradar : placere, delectare , agradar, deleitar denotam o prazer estético que o discurso deve suscitar, o orador deve agradar o gosto do ouvinte, agrada-se sobretudo pelo estilo. Mas não se trata de agradar por agradar, senão com o intuito de persuadir.

Como já foi visto, diversos fatores acerca do contexto histórico e características do Barroco estariam presente no Sermão, e a forma retórica, na intenção de convencer, comover e agradar um público já quase descrente na Igreja Católica, seria um instrumento habilmente usado por Vieira. Aliás, contestado pelo Tribunal do Santo Ofício, seu modo de pregar consistia na apresentação de fatores que de fato iam contra o alto clero, Vieira preocupava-se em chamar a atenção de seu público - "olhos e ouvidos de ver".



[1] ALEXANDRE JÚNIOR, Manuel ; "Introdução"; in ARISTÓTELES; Retórica; Lisboa; Ed. Imprensa Nacional- Casa da Moeda; 1998; p 12.
[2] TRINGALI, Dante; "Introdução às Retóricas" ; Araraquara; Departamento de Literatura, Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação - Universidade Estadual Paulista- UNESP ; 1984 ; pp 19.

[3] 3. TRINGALI, Dante; "Introdução às Retóricas" ; Araraquara; Departamento de Literatura, Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação - Universidade Estadual Paulista- UNESP ; 1984 ; PP. 26-28

Bibliografia

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BANGERT, William V. História da Companhia de Jesus. São Paulo: Loyola, 1985.

JÚNIOR, Manuel Alexandre. Introdução In: ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998.

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